sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Morcelada

Há sempre a tradição do dito do dote culinário, que passa de geração em geração. Após a matança do porco, aliás corrijo, da porca ou marrã (vulgo), surge o banquete, com alguns petiscos que se fazem artesanalmente nesta altura: morcela de arroz, morcela de massa, bucho, fritada e chouriças. Pela boca dos tios e dos pais, conta que se fazia esta jantarada, para aproveitar as partes que não se podiam conservar mais tempo: as tripas, a carne fraca e o osso do peito. “Só havia a salgadeira e o defumadouro da chaminé. Não havia frigoríficos. … A carne gorda magra, pesunhos, orelhas e as carnes boas, guardavam-se na salga; as tripas grossas e o véu para as morcelas; as tripas miúdas para chouriças, que iam ao defumadouro com os presuntos; a carne gorda alta para fazer torresmos e banha”… tudo bem aproveitadinho rapidamente, para não se estragar. “Só se matava uma vez por ano … e maior parte das vezes marrãs, porque a carne é tenra e não tem cheiro, a não ser que esteja de maré, ou aluada, porque nessa altura nem os cães lhe pegam, eh eh eh eh! … a carne do macho, se for de salto e velho cheira a barrasco ou a bedum, e é rija como os cornos“ … ok percebi.
Ao olhar para o desmanchador, recordei as andanças da vizinhança na matança: a azafama do combinar para a madrugada, por causa das moscas; matar o porco; chamusca-lo com carqueijas; raspá-lo com uma telha de canudo; escaldar a língua, focinheira e orelhas; pendurá-lo no chambaril e amanhar, para deixar a carne arrefecer, ficar seca e limpa; as mulheres lavam e ripam as tripas com vime, sal, limão e laranja, para tirar o farum; e no dia seguinte de madrugada, desmanchar, e preparar a jantarada. Tudo procedimentos, que nós na altura miúdos, emproados e despertos, assistíamos …
As mulheres á parte, preparam o recheio das morcelas, misturando no alguidar de vidro, sangue, alho, carne do véu, e especiarias diversas, com o arroz ou com a farinha; cortam a carne para as chouriças, misturando-a com colorau, vinho, alho, louro e um repouso de três dias; num tacho de barro, amiúda-se o coração, a cachola, o osso do peito, e um pouco de bofe, e leva-se ao lume com vinho, alho, colorau e louro; á lareira, junto á tachada ou fritada que coze lentamente, ferve o panelão para cozer as morcelas … “vamos lá ver se elas não se despem!” … o forno aproveitou o calor da fogueira para ser aquecido “tem que se tender o pão e a broa; não deixem destemperar o forno; se ele descai comemos o pão e a broa enqueijada!” … mais uma braçada de lenha: o lar ruboriza, e as paredes de preto que estavam, começam a desmaiar para o branco do calor que se acumula, … as tendeiras descansam junto ao lume, para a massa crescer … um monte de lenha verde, aguarda pela sua vez para defumar as chouriças e o presunto. A salgadeira começa a encher, entre camadas de sal grosso, e camadas de carne, … Numa taça, prepara-se uma massa com alho, colorau, pimenta branca, banha, louro e sal, e barra-se o presunto para se pôr a curar no defumadouro da chaminé …
Depois de tudo limpo e arrecadado, chamam-se os homens, para a bucha: prova-se a morcela, para ver se está salgada; enserta-se a broa quente e prova-se a fritada, que continua a cozer as miudezas; e agora que o tempo é muito, num tacho põem-se a carne gorda para fazer torresmos e banha, e ao lado prepara-se uma sopa rica de legumes, com a carne da cabeça … e finalmente cai a noite para a janta da família, …
Hoje, alguns procedimentos alteraram-se: “ já não se abusa nos temperos, por causa do colesterol” diz a tia … “carrega-se no botão, e sai logo tudo feito!” diz o pai … e hoje vejo que o sabor, é mesmo sem sabor, … falta mesmo uma pitada do outrora … bem que me sentia desensalado nestes repastos, … O primo trouxe uma pinga do Dão, do rol do gado caprino, “Cabriz”, tinto, rubi e leve, acabou por assentar que nem uma luva, … mas que belo convívio.

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