sexta-feira, 9 de março de 2012

"Plingrafia"

A entrada embica na curvatura do edifício; aro em Moca de Candeeiros, bujardado ao centro, arestas em boleado de baixo relevo; soleira com dois degraus em mármore de Estremoz branco, gasto ao centro pelo uso;  duas portas altas, uma aberta, castanhas de carvalho ressequido, ornamentadas com grade em verdete oxidado. Ao fundo, o labirinto de escadas que sobe sem fim á vista, com degraus e espelhos de pinho nórdico, vão de escadas polido em pinho, termina em pata de leão; pouca luz, só a que alimenta a entrada.
Mergulha para o estreito corredor, que afunilado encaminha, obrigatoriamente a subir ao primeiro piso.
O primeiro piso, escuro que nem o breu, centelha uma pálida luz, do vidro fusco martelado do laboratório; apalpa a maçaneta, e roda ... a porta está destrancada, chia e o pequeno sino acusa. Entra. Um pequeno balcão vitrina: molduras vazias, albuns, cartões de festas. Um silêncio e cheiro a livros ressequidos com madeira do soalho, misturam o ar.
Ouve-se ranger o soalho; aparece a figura de meia altura, com alguma calvice, barba e patilhas brancas á ferroviário; óculos redondos de arame; simpático, franzino, fato cinza flanela, camisa engomada branca, e a ressalva de um papillon azul turquesa acetinado em laivos de madre pérola bordeaux na contra luz; sapatos pretos de pé pequeno.
"Bom dia! Bem vindo á Plingrafia! O que o traz por cá?" num cumprimentar de pequena mão pálida que esticava saindo da manga ...
"Bom dia! Um retrato!" confirmou no aperto. Indicou para uma sala, fechada por duas portas basculantes, com vidrinhos cravados em pinho lacado a cinza.
Entram, com o ranger de molas secas; um holofote contra a parede, vislumbra alguma cor sobre um cenário opaco ao canto, as linhas da sala vazia, recheada com cenários enrolados, uma corda de cisala ao outro canto, ... um banco reside só. O kadomax, está pendurado a uma mola-tesoura, ... pouco mais.
"Sente-se!" Acondicionado, ao banco prepara a pose ... "Para que efeito é?" ajeitando o rosto, a postura e o cabelo
"Simplesmente um retrato!" confirma "Para enviar á família, lá para a terra..."
A câmara é dexida; a lente limpa; obturador ajustado á intensidade da pouca luz; o zoom roda e aproxima, e o dedo pressiona o botão... zás, ... o flash dispara por milésimos de segundo, e revela o impensável por instantes, ... que se prolonga por séculos ... uma sala viva e cheia de cores.
"Desculpe! Tive a ligeira impressão de ver um cardápio de cores, pelo tecto e paredes da sala..."
"Impressão sua!" interrompeu mudando o humor "Aguarde um momento!" tira a chapa e leva-a para um canto...
Volta amuado ... "Que raio! Mais uma vez!" apresentando e virando o frame
O modelo olha para o retrato ... "Mas que raio! Porquê só a boca? E este ar zangado?"
O fotografo confessa "Nestes últimos tempos perdi mais que muitos clientes! Não consigo arrancar um sorriso de uma face! E tento, que bem tento! ... e o resultado é sempre o mesmo!"
Sai do banco, e olha melhor e de novo para o retrato, girando e contra girando, e interrompe "Uma questão de perspectiva!"
"Como?"
"Eu sorri, e encantei-me com a sua paleta de cores que esconde!" girando a foto ... "Veja?"
...
"De facto, eu sempre consegui! Ele sempre esteve lá!" dirige-se para a corda e puxa ... a clarabóia aparece, libertando a luz solar pelos vitrais, ... corre freneticamente para as paredes camufladas, de milhares de frames zangados, girando todas as fotos que cobrem as suas paredes do estúdio, uma por uma...
"Ele sempre esteve aqui!"