Subi as pequenas escadas inclinadas em esquadria, que embocavam numa pequena porta verde em pinho ressequido, da oficina. Empurrei a porta, calçada com uma pedra polida do rio, e rangeu, … o mestre, figurava sentado, levando á dança uma agulha e um fio-do-norte, no remate de uma ponta descosida … aproximei-me dele. Pôs o seu trabalho de lado, e levantou-se, de pronto a receber-me, com a ajuda dos braços, exercendo a força sobre os joelhos. O cardado das mãos, contrastava com o seu sereno ar... Saudei-o, gesticulando um acenar aéreo de "bom dia!"; contudo apertei-lhe a mão;... Movimentou os lábios, olhando-me, num surdino "b-o-m d-i-a!"
Voltou á banca, puxando um pesado avental de cabedal manufacturado de acastanhado, que dormia no chão nu da laje, junto a alguns pares de caminhadas de vida por arranjar, de modo a endireita-los e a encaminha-los... ajeitou o quico!
“Tenho estes, … precisam de um arranjo; duma … não sei … talvez … ” balbuciei mostrando o par …
Agarrou-o com suavidade, … vistoriou-o … “Humpfff! D-e q-u-e-m s-ã-o?” enquanto os manuseava …
“São da moça da aldeia vizinha, e que estuda na cidade!” informei …
Coçou o queixo, … “E-l-a g-o-s-t-a d-e t-i?” indagou …
Um pouco surpreso, respondi “Ela ama-me!” …
Olhou com precisão para a forma, … “N-ã-o h-á m-u-i-t-o m-a-i-s a f-a-z-e-r! … Humpfff! … O p-a-r e-s-t-á m-u-i-t-o b-e-m! … F-o-i f-e-i-t-o c-o-m m-e-s-t-r-i-a, f-é, d-o-r, d-e-d-i-c-a-ç-ã-o, … e s-o-b-r-e-t-u-d-o, c-o-m m-u-i-t-o a-m-o-r! Humpfff!” disse-me na sua paz …
“Mas isto não precisa de arranjo?” mostrando-lhe o que julgava ser o defeito, … “Humpfff! … I-s-t-o s-ó p-r-e-c-i-s-a d-u-m p-a-s-s-a-r d-e d-e-d-o p-e-l-o s-e-u c-a-b-e-l-o; o-u a-t-é d-e u-m o-l-h-a-r d-e-d-i-c-a-d-o; o-u d-e u-m a-c-o-n-c-h-e-g-o n-e-s-t-a-s n-o-i-t-e-s f-r-i-a-s; o-u d-e u-m a-b-r-a-ç-o i-m-p-r-e-v-i-s-í-v-e-l !” embrulhando o par, carinhosamente em folhas de papel de jornal …
A conversa, não iria render mais … peguei no embrulho, … acomodei-o debaixo do braço … ele voltou, com o seu ar taciturno, e de parcial surdez, a pegar no fio-do-norte enfiado na agulha … picou, puxou, encarreirou a vida … vezes e vezes sem conta …
“Quanto é? “ metendo a mão ao bolso, tilintando entre anseios, e desejos de uma vida …
“Humpfff! N-a-d-a !” no seu gaguejo de mudez natural, acenando silenciosamente a minha saída … volvi ás escadas, deixando para trás uma pequena oficina, de pouca luz, servida com a sua pequena janela minúscula, a sua pilha de formas enumeradas, peles de tom outonal, pares polidos, e o tic-tac que ruidosamente me despedia …
Há sapateiros que são verdadeiros filósofos... pensam muito enquanto trabalham...
ResponderEliminarGostei do texto, é muito interessante.
Um abraço.
Comoveu-me.
ResponderEliminarMeu saudoso pai era sapateiro.
Mas seu texto, mostra o quanto sabes olhar, ouvir, perceber a magia das coisas sempre simples e nunca óbvias.
1 abraço e
vou procurar-te no face.
sapateiro de palavras sentidas
ResponderEliminare que nada leva pelas suas palavras...
palavras de filosofia ...
abrazo serrano