sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Condimento para um Natal


O Natal batia á porta, ...
A casa era esconsa nos cantos, paralela á sebe do jardim, rectilinha no carreiro, branca caiada a desmaiar num esboço grosseiro, ... Viviam lá três habitantes, uma lareira acesa, uma cantareira, e por vezes duas pessoas e um animal. Á janela uma vela, ... lá fora um frio de neve.
A mesa tosca de pinho nervurado, mantinha a mesa posta, que aguardava a ceia, ... dois pratos fundos de madeira talhados, duas colheres, dois copos, uma panela fumegante que esfriava lentamente uma canja de pombo, um jarro de coalhada fresca preparada no dia anterior, um pão cozido na manhã... ela repartia a companhia de um fogo crepitante que dançava e consumia uma cavaca de zimbro e duas de pinho.
Ele saíu a meia tarde! O gato mandriava junto á porta. Zagalote ás costas, 3 balas, 2 delas oxidadas, saco de pólvora, pedra de pederneira, mecha seca no bolso do capote, uma candeia. No meio do pinhal, a tarde entardecia, ...
De candeia acesa, cachimbo na boca, balbucia vapor e fumo ofegante entre passadas fortes na neve densa, ... orelhas atentas a qualquer movimento; nesta altura do dia, a predominância de vampiros chatos, lobisomens atroadores, almas de cabeça perdida, ... um misto de vasqueiro de outro mundo, entorpece o som, o odor, a visão ...flocos de neve resistem á lei da gravidade, solenemente.
O por do sol mostrava o seu ultimo raio, e alaranjava com rosa e azul o horizonte, ... nada de pressas.
Abanca junto a um cepo abatido nalgum temporal, que jaz sob um manto de musgo e neve, que encobre a sua figura... carrega o zagalote pacificamente, afia o fio do cutelo, nivela o relógio de areia, monta a armadilha com teia de aranha, coloca o isco: um punhado de flor de sal; reserva. Posiciona a arma entre raízes soltas e grisalhas, dedo no gatilho... Pôe-se á coca, ... mira entre a neve e árvores, o vislumbre de uma silhueta ... e espera, e aguarda. Traga um gole curto da pequena cabaça com aguardente, travo a canela. Aquece a alma por instantes.
Acata as ordens do tempo que urge, e do resto da luz que sobra da candeia. A noite já se impõe, as constelações vão-se espalhando pelo manto celestial. Vai ter que desistir, a presa não surge. Guarda tudo de novo na sacola, desarma o zagalote.
Volta as costas desapontado, ... regressa ao trilho para casa, ... 11.235 pés de distância, ... não haverá petisco para a festividade anual, somente um cântaro de água que aquece á lareira, uma canja de pombo fria, o colo do gato pachorrento, o amor da mulher...
Muitos pés gelados e encharcados a trilhar, vislumbra a pequena chama acanhada que acena da sua casa.
Com a pesada noite de escuridão, ao longe ecoa um som agrupado, entre galhos partidos, cavalgadas crepitantes, que amplifica pelo silêncio da floresta; vultos prateados que chicoteiam a alva neve, em coreografia desencantada. Centenas, dezenas ou milhares, não sabe, que se movem em migração, na sua direcção, ... será esmagado, ou triturado talvez.
Puxa o zagalote; recarrega sem pressas; apoia um joelho no chão, estala a neve; encaixa o coldre ao ombro; o alvo principal está na mira: o líder mostra o ataque no olhar ofegante da sobrevivência.
Fixa o olho cristalino,... desfere o gatilho, ... o projéctil voa, ... rasga a carne, ... cai a vitima. O grupo separa-se. O silêncio abocanha o que resta do tiro que ecoava gelidamente.
Atira o zagalote ao chão. Puxa o cutelo, e salta para a besta, ... amanha-a. Abre a sacola, agarra um punhado de flor de sal, e tempera-o. Sorri. Recolhe os artefactos. Regressa ao carreiro.
O trinco roda, ... ela assusta o gato, com um levantar preocupado, ... a porta abre-se. "Nicolau!" diz ela. Ele entra, ...  o calor aquece o rosto, e o beijo dela. Pendura a presa na parede, ... a sacola no chão acompanha o zagalote.
"Teremos um belo Natal!" coçando a barba branca, pendurando o carapuço.
Ela reaquece a canja, ... amanhã é véspera de Natal.